quinta-feira, 1 de setembro de 2016

ELLIZABETH BISHOP E O BRASIL: O ACONCHEGO E A MELANCOLIA

Por Adalberto Queiroz (Goiânia, GO)

A norte-americana Elizabeth Bishop nasceu em Worcester, Massachusetts, em 8 de fevereiro de 1911, e morreu 68 anos depois (em Boston (EUA). Em 1951, depois de ter chegado de navio, ao porto de Santos, Elizabeth encantou-se pelo país, sobretudo pelas montanhas de Petrópolis e lá permaneceu por longos quinze anos. Durante esse período, escreveu numerosos registros e poemas, nutriu uma relação afetiva com a paisagista Lota (Maria Carlota Costellat Macedo Soares) – que a manteve ligada ao Brasil, onde a poeta teve o aconchego que lhe proporcionou “os mais felizes dias de sua vida”.
Se estiver certo o pensador francês Gaston Bachelard quando cita Pierre Jean-Jouvet: “poesia é uma alma inaugurando uma forma” – tarefa que daria ao poeta “enorme poder e dignidade humana”, eis-nos diante da oportunidade única de redescobrir, de desvelar a alma de uma poeta de alta qualidade que se expressou com grande “intuição criativa”.
Quis o destino que Elizabeth Bishop comesse um caju assim que chegou ao Brasil em 1951...” – diz Felipe Fortuna em “A próxima Leitura” – para concluir que, a poetisa, mesmo confusa em muitos momentos na relação com o país, teria admitido ter aqui vivido “os anos mais felizes de [minha] vida” e como poeta ter provado mais que um fruto proibido: “provou que é possível escrever grande poesia mesmo quando se encontram problemas de informação e apreciações confusas sobre outras culturas”.


A conclusão de Felipe Fortuna vem da apreciação escrita que do país fez Elizabeth Bishop – num texto composto pela poetisa “e editado por mãos severas da redação de um grupo de jornalistas da revista Life. Mesmo que o livro, hoje fora de circulação e desatualizado, contenha outras informações que não advindas da pena de Bishop, na essência ao ser cotejado com as cartas aos amigos norte-americanos, prova que as idiossincrasias, incluindo um certo mau-humor com alguns aspectos da vida nacional, sua sobre a visão da poeta estrangeira a respeito do país está eivada de problemas de apreciações confusas e às vezes geocêntricas.

Há muitos momentos de mal-entendidos e subentendidos em sua avaliação sobre o país e, segundo ela própria, em matéria de poesia esse ingrediente faltava no Brasil. É o que Elizabeth Bishop constata em cartas, diários e na introdução à Antologia da poesia brasileira do século XX, que editou com Manuel Brasil (1972). Se constata que há muitos poetas e muito apreço pela poesia no Brasil, termina por ridicularizar o próprio Bandeira (a quem dedica o livro) bem como o “tratamento respeitoso que os poetas tinham no Brasil”, segundo Fortuna como “algo de ridículo e ultrapassado”.
- “Apesar de tudo isso, vale a pena ler e escrever sobre Elizabeth Bishop e sua poesia nos dias de hoje?” Sim. É minha resposta entusiasmada, porque tendo passado alguns dias em férias nos EUA, tendo a poesia de Bishop como minha segunda companheira, eu afianço ao leitor que ela merece ser lida e relida, entendida e, por que não, amada.
O problema que se coloca desde o início é o mesmo diante do qual sofre o biógrafo: a perspectiva. “Um dos maiores problemas para quem escreve a biografia de um poeta é a questão da perspectiva, do ângulo, ou ângulos, que o biógrafo toma para tentar alcançar a essência deste poeta” – adverte-nos Paul Mariani, biógrafo de vários poetas norte-americanos (Lowell, William Carlos Williams, Hart Crane e John Barryman, além do excelente “God and the Imagination”, livro sobre “poetas, poesia e o inefável”).

Se em uma biografia o foco é um problema a resolver, em um artigo chega a ser uma barreira quase insuperável. A menos que se projete uma série de artigos, este seria uma espécie de “arrancar o véu” à poesia de Elizabeth Bishop. 


- Há um filme sobre a vida dela, responde-me de pronto uma leitora-amiga.

Desinteressado (e distante das salas) de cinema, desejo outra forma de expressão, o ensaio, uma pequena contribuição crítica – cada vez mais ausente de nossos jornais; e assim, espero propor um diálogo intercultural e não um ensaio de comportamento e relações. Eis, pois, um bom porquê.
Não há como deixar de escrever sobre Elizabeth Bishop, nem que fosse por gratidão à poeta que aqui viveu por quinze longos anos, estabeleceu vínculos emocionais com o Brasil e os brasileiros, registrou seu encantamento, suas diferenças culturais e suas surpresas com as mais diversas facetas do ser brasileiro e da geografia – que é um dos temas animadores de sua poesia, mesmo que tenha cometido tantas confusões e subapreciado um sem-número de detalhes, talvez até porque tenha decidido ser sempre estrangeira, por exemplo, não aprendendo a falar a língua do país adotado.
O Mapa Elizabeth Bishop, trad. Paulo Henriques Britto.

Terra entre águas, sombreada de verde.
Sombras, talvez rasos, lhe traçam o contorno,
uma linha de recifes, algas como adorno,
riscando o azul singelo com seu verde.

Ou a terra avança sobre o mar e o levanta
e abarca, sem bulir suas águas lentas?
Ao longo das praias pardacentas
será que a terra puxa o mar e o levanta?
A sombra da Terra Nova jaz imóvel.

O Labrador é amarelo, onde o esquimó sonhador
o untou de óleo. Afagamos essas belas baías,
em vitrines, como se fossem florir, ou como se
para servir de aquário a peixes invisíveis.
Os nomes dos portos se espraiam pelo mar,
os nomes das cidades sobem as serras vizinhas
— aqui o impressor experimentou um sentimento semelhante
ao da emoção ultrapassando demais a sua causa.

As penínsulas pegam a água entre polegar e indicador
como mulheres apalpando pano antes de comprar.
As águas mapeadas são mais tranquilas que a terra,
e lhe emprestam sua forma ondulada:
a lebre da Noruega corre para o sul, afobada,
perfis investigam o mar, onde há terra.

É compulsório, ou os países escolhem as suas cores?
— As mais condizentes com a nação ou as águas nacionais.
Topografia é imparcial; norte e oeste são iguais.
Mais sutis que as do historiador são do cartógrafo as cores.
Poema original - The Map (E.Bishop)

Land lies in water; it is shadowed green.
Shadows, or are they shallows, at its edges
showing the line of long sea-weeded ledges
where weeds hang to the simple blue from green.
Or does the land lean down to lift the sea from under,
drawing it unperturbed around itself ?
Along the fine tan sandy shelf
is the land tugging at the sea from under?

The shadow of Newfoundland lies flat and still.
Labrador’s yellow, where the moony Eskimo
has oiled it. We can stroke these lovely bays,
under a glass as if they were expected to blossom,
or as if to provide a clean cage for invisible fish.
The names of seashore towns run out to sea,
the names of cities cross the neighboring mountains
— the printer here experiencing the same excitement
as when emotion too far exceeds its cause.
These peninsulas take the water between thumb and finger
like women feeling for the smoothness of yard-goods.

Mapped waters are more quiet than the land is,
lending the land their waves’ own confirmation:
and Norway’s hare runs south in agitation,
profiles investigate the sea, where land is.
Are they assigned, or can the countries pick their colors?
— What suits the character or the native waters best.
Topography displays no favorites; North’s as near as West.
More delicate than the historians’ are the map-makers’ colors.

Quando chegou ao Brasil, Elizabeth Bishop procurava por algo mágico, espiritual, uma visão, uma nova geografia, mas a turista inadvertida encontra numa fruta (caju) o atrativo traiçoeiro, que capaz de transformar a turista em portadora de visto permanente, por quinze anos, também a fez entender os dissabores de provar a fruta tropical. Elizabeth teve uma alergia e precisou de socorro médico, daí em diante, mais do que advertir os futuros turistas sobre o que podiam esperar do Brasil, Bishop conviveu com uma elite pensante, traduziu poemas, viveu uma paixão por outra mulher e atraiu outros escritores (como Robert Lowell) para conhecer o país e a nossa literatura. 


A “estrangeira” Bishop pagaria o preço da dificuldade de compreensão e como tal é “estranha” ao “dimensionamento das pequenas coisas do cotidiano” (Fortuna), seja no plano das relações sociais, seja no plano do funcionamento tropical e das características étnicas – digo com base em Felipe Fortuna que acentua não haver “em Elizabeth Bishop qualquer impulso de integração ou de imersão na cultura e sociedades locais”.

Esse distanciamento (a)crítico da poeta se confirma na observação de Paulo Henriques Britto sobre as relações de Bishop e o Brasil: “o que realmente a fascinava no Brasil era a natureza; os costumes da gente simples despertavam nela uma curiosidade distanciada; e a high culture brasileira pouco a interessava, com exceção de um número muito reduzido de escritores” – que frequentavam a casa de Lota e da poeta seja no Rio ou na Casa Mariana (hoje casa-museu em Ouro Preto).
Embora pouco traduzida no Brasil, Bishop é lida por “dois entre mil*” – os poucos leitores de poesia abaixo do Equador (ou os leitores em língua portuguesa) nos originais que são facilmente encontrados em sebos e em livrarias online. Se divulgada massivamente e tendo sua poesia disponível para um grande público como se fez agora com sua vida em “Flores Raras”, Elizabeth poderia ser vista como a poetisa do detalhe, a artesã que era capaz de deixar em suspenso por anos a fio um poema, à espera do que lhe parecia o tom perfeito (One Art teria consumido 25 anos da escritora); corrigia detalhes em poemas publicados – de uma edição a outra – “era essencial para Elizabeth Bishop que as palavras numa frase poética fossem precisas e exatas”, afirma o ficcionista Colm Tóibín em “On Elizabeth” (2014). “No Detail too Small” – título retirado de um verso do poema Sandpiper  (O maçarico).


Em uma carta ao amigo, o poeta Robert Lowell, Bishop defendia essa disciplina quase maternal (no entanto de comandante naval) com as palavras: “Já que estamos navegando em um mar desconhecido [fazer Poesia], é aconselhável analisar cuidadosamente tudo que flutua em nossa direção; quem saberá dizer quanto poderemos depender desse detalhe” - teria assim a palavra como tábua de salvação.

Para Tóibín, em Elizabeth Bishop “a word was a tentative form of control”. Essa forma de controle é que permitiria à poeta – de resto a todos os bons poetas – navegar com segurança no mar da arte que pratica. Em Bishop, as palavras e suas estruturas, sua escolha criteriosa parece sempre conspirar para que mesmo de forma hesitante, tímida ou experimental se estabelecesse quem está no controle – aprende-se com Tóibín e com a leitura atenta da poesia de Bishop.
Da terra dos avós no Canadá (Nova Escócia), Elizabeth teria herdado a economia de meios. Segundo Tóibín, que é irlandês, originário de um mesmo costume, em certas sociedades fala-se pouco e expressa-se com eficácia.
Chegada em Santos (Arrival at Santos) – um guia para o turista incauto ou: alerta ao que vai chegar ao Brasil (na época os navios eram o meio de transporte mais utilizado para a chegada) – a tradução é de Paulo Henriques Britto.

Chegada em Santos

Eis uma costa; eis um porto;
após uma dieta frugal de horizonte, uma paisagem:
morros de formas tão práticas, cheios - quem sabe?
                                          [de autocomiseração,
tristes e agrestes sob a frívola folhagem,

uma igrejinha no alto de um deles. E armazéns,
alguns em tons débeis de rosa, ou de azul,
e umas palmeiras, altas e inseguras. Ah, turistas,
então é isso que este país tão longe ao sul

tem a oferecer a quem procura nada menos
que um mundo diferente, uma vida melhor, e o imediato
e definitivo entendimento de ambos
após dezoito dias de hiato?

Termine o desjejum. Lá vem o navio-tênder,
uma estranha e antiga embarcação,
com um trapo estranho e colorido ao vento.
A bandeira. Primeira vez que a vejo. Eu tinha a impressão

de que não havia bandeira, mas tinha que haver,
tal como cédulas e moedas - claro que sim.
E agora, cautelosas, descemos de costas a escada,
eu e uma outra passageira, Miss Breen,

num cais onde vinte e seis cargueiros aguardam
um carregamento de café que não tem mais fim.
Cuidado, moço, com esse gancho! Ah!
não é que ele fisgou a saia de Miss Breen,

coitada! Miss Breen tem uns setenta anos,
um metro e oitenta, lindos olhos azuis, bem
simpática. É tenente de polícia aposentada.
Quando não está viajando, mora em Glen

s Falls, estado de Nova York. Bom. Conseguimos.
Na alfândega deve haver quem fale inglês e não
implique com nosso estoque de bourbon e cigarros.
Os portos são necessários, como os selos e o sabão,

e nem ligam para a impressão que causam.
Daí as cores mortas dos sabonetes e selos -
aqueles desmancham aos poucos, e estes desgrudam
de nossos cartões-postais antes que possam lê-los

nossos destinatários, ou porque a cola daqui
é muito ordinária, ou então por causa do calor.
Partimos de Santos imediatamente;
vamos de carro para o interior. 

(Tradução de Paulo Henriques Britto)


Como diz Paulo Henriques Britto é lamentável que toda a obra da poeta não tenha ainda sido traduzida ao nosso idioma. “Das injustiças do Brasil com Elizabeth, tem-se a publicação apenas parcial de sua obra. Segundo Paulo Henriques Britto, nenhum livro foi publicado integralmente no país e os poemas só aparecem em duas coletâneas, Poemas do Brasil, de 1999, atualmente esgotada, e Poemas Escolhidos, de 2012, ambas da Companhia das Letras. Mesmo agora, que a editora prepara o lançamento de um livro com a produção em prosa da poetisa para 2014 — que inclui alguns textos inéditos–, houve uma seleção, feita por Britto. Mas, se o país não está na lista de seus maiores leitores, ao menos pode se orgulhar de ter sido fundamental para uma das poetisas mais importantes do século XX”. É, pois do mais importante tradutor de Bishop, que deixo o leitor com alguns poemas em conclusão a este artigo. 

O primeiro é talvez seu poema mais conhecido, uma forma ítalo-francesa (villanelle), poema no qual a poetisa trabalhou longos 25 anos. One Art (Uma Arte) é considerado um verdadeiro manual de perdas – assunto no qual a poeta foi ao longo de sua vida, uma especialista e anotadora cruel e detalhista – Susan McCabe chega a dizer que Bishop logrou construir uma “poética da perda”. 
O poema, é pois, o resumo de uma vida, tal como quer o crítico Lloyd Schwartz sobre a obra de Bishop: “ela vive(u) através de seus poemas”.

Se foi feliz apenas na Nova Escócia dos avós e no aconchego que lhe proporcionou o amor de Lota Macedo (no Brasil), Elizabeth Bishop faz-nos, detalhista que é – extasiados diante da melancólica epifania. A nós, seus leitores, Elizabeth nos conduz num mar de palavras como pessoas menos interessadas em hábitos, escolhas ou decisões amorosas; e, sim, mais afeitos ao detalhe e ao “silencioso e concentrado esforço” da expressão poética – lendo ou escrevendo – estamos com Elizabeth Bishop presos “numa conspiração afetiva” entre escritor(a) e leitor.
____
Uma Arte (One Art), trad. de P. Henriques Britto.
A arte de perder não é nenhum mistério
tantas coisas contém em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouco a cada dia. Aceite austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. Um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

Mesmo perder você (a voz, o ar etéreo, que eu amo)
não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser um mistério
por muito que pareça (escreve) muito sério.
(Elizabeth Bishop; tradução de Paulo Henriques Brito)

_____
(*) (*)A expressão em destaque acima é de Regina Przybycien, tradutora da poeta polonesa Wislawa Szymborska, ganhadora do prêmio Nobel de 1996).  “Alguns –/ ou seja nem todos./ Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria./ Sem contar a escola onde é obrigatório/ e os próprios poetas/ seriam talvez uns dois em mil.” É assim que a polonesa Wislawa Szymborska ri da própria impopularidade como poeta nos primeiros versos de “Alguns Gostam de Poesia”, publicado em 1993 – três anos antes de conquistar o Prêmio Nobel de literatura. Embora a poesia não seja realmente um dos gêneros literários mais consumidos, não se pode negar o valor desses “dois apreciadores”. Principalmente porque um deles é a curitibana Regina Przybycien, professora convidada da Universidade de Cracóvia responsável por traduzir esses e outros versos da autora para o português, na coletânea de poemas da autora recentemente publicada pela Companhia das Letras (Wislawa Szymborska [poemas]).

Com as facilidades digitais de hoje, proponho ao leitor que domina a língua inglesa a experiência de ver/ouvir a leitura de um dos poemas mais representativos da minúcia, do detalhe em Elizabeth Bishop que é o poema Sandpiper  - (“no detail too small”) - o título Sandpiper refere-se ao pássaro maçarico ou maçariquinho), YouTube, via link abaixo – poema falado (e ilustrado) por Fred Proud. https://www.youtube.com/watch?v=bFGT97dynnE

Outra pérola digital está no projeto 92|Y On Demand, com a leitura pela própria Elizabeth Bishop de alguns poemas:
http://92yondemand.org/75-at-75-colm-toibin-on-elizabeth-bishop
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Livros citados: “A próxima Leitura”, Felipe Fortuna; “On Elizabeth” Colm Tóibín; “Poems”, Elizabeth Bishop, Farrar, Strauss & Giroux (2011); “How to Read a Poem and Fall in Love with Poetry (Edward Hirsch, 1999). Elizabeth Bishop: Poemas escolhidos, Seleção, tradução e textos introdutórios de Paulo Henriques Britto.


Arquivo de fotos: https://goo.gl/photos/rLp5zFAgAA3nnzDV9


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