quinta-feira, 1 de outubro de 2015

UMA CIDADE MÁGICA

Por Ridamar Batista (Anápolis, GO)

    Minha cidade não é uma cidade, é um clã ou melhor uma tribo. Não temos língua pátria, temos um dialeto exclusivo e puro. Somos apreciados pelo mundo a fora como seres "DiouUU" ou seja, de outro planeta, porque entre nós pouca palavra basta e se for
apenas um pedaço, aí sim, é que se fala tudo.
     Falamos de várias maneiras, inclusive com as mãos e falamos muito alto, acho que o motivo, são os morros que abafam nosso som. Em nosso linguajar podemos encontrar muitas ramificações dialéticas, como por exemplo falar de trás para frente, falar a língua do P ou falar por sinais e neste campo entram, pequenos toques, piscar de olhos, trejeitos com a face, levantar a sobrancelha, cocar, lamber os lábios, tocar suavemente ou mesmo beliscar o outro, isso depende da circunstância.
    Temos costumes diferentes, e, ao mesmo tempo, iguais. Existe um algo em comum que supera todas as expectativas. Cantamos, dançamos, fazemos festas homéricas ou simplesmente conversamos, sendo que uma coisa e outra ou tudo junto, é sempre o mesmo ato de ser feliz.
    Por nossas calçadas enfeitadas de pedras multicoloridas, passaram e passam pessoas de todas as partes e de toda as condecorações, e, ninguém de nossa tribo levanta a cabeça ou a abaixa por tal transeunte. Somos  sempre mais importantes. Somos daqui.                                                            
   Qualquer pessoa que ousar pisar o nosso chão sem pertencer ao mesmo clã, é sempre e para sempre chamado " gente de  fora". Somente o padre ( grande contribuidor para o aumento do clã) nunca fora chamado de fora. Respeito? Talvez um quê de hipocrisia, melhor com ele...
    O médico também é pessoa colocada no pedestal. Para ele tudo e todos, sem jamais questionar um ato ou fato.
    O que mais me encanta em minha cidade é o gosto comum pelos apelidos. Todo mundo tem um e nem se pode dizer no tal Bullying. É mesmo quase cordial, quase afetivo  ter um apelido, por mais esdrúxulo que pareça. Fogueira,  Ferrugem ou Fogoió, tudo se refere a quem tiver nascido com os cabelos ruivos, e, não foram poucos. Numa cidade como  esta é de se admirar, porém, ninguém busca razões,  apenas apelida e pronto. Sabiá, Periquito, Ganço ou  qualquer outro pássaro que por ventura fizer motivo, se torna por aqui em nome próprio. Ganbá, coruja, Jegue, Jumento ou coisa parecida, todos estes apelidos são comuns.
   " Peidou,  cagou"... pobre moça, fora conhecida até se mudar, por este triste apelido que lhe fora concedido, por um momento de torpe diarreia em pleno cinema da cidade.
     E para não falar dos tantos bobos que por aqui habitam...  À bobos, se incluem todos que não fazem parte da maioria extremamente culta, poética ou boêmia, que formam a massa. E estes conhecidos por " uma parte no canteiro" ou um mil reis na nota", não me perguntem nunca o que, isso quer dizer. Só ouvi, nunca entendi.
     Numa tal sintonia intelectual vive esta gente que ao longo de uma vida dois amigos se falavam por meio de Charadas. Eram compadres, amigos e eternos companheiros de pescaria, cachaça e cigarros. Um dia voltando de uma desta tais pescaria um dos dois ao chegar próximo da esquina de suas casas disse:
     - Ultimo cigarro da pescada.
    Um foi para um lado e o outro para o oposto.
    Lá pela meia noite, o compadre que ficara calado, se levanta da cama e sai de casa. Bate a aldaba da casa de seu amigo e quando este se levanta para atender o compadre lhe pergunta:
- Quantas?
   Em charadas se faz uma frase e se diz o número de sílabas, daí o outro tem que responder uma palavra que coincide com o número de sílabas e o resultado da frase, mas naquele momento não havia Charada. Era apenas uma despedida.
-Quantas?
   O compadre que dissera a despedida" Ultimo cigarro da pescada" ficou sem entender nada. Daí ou outro amigo lhe explicou:
 -Não consigo dormir. Já tentei de tudo, mas você não me deixou o número das sílabas.
   Risos, explicações... Tudo resolvido, não era uma charada. Apenas uma simples despedida.
   Tudo acontece em minha cidade.
   Quando ela começou, vieram pessoas de alguns lugares e ali foram se assentando, fazendo a vida e fazendo fortuna. Tudo virava dinheiro. Os minerais eram de uma fartura incomensurável, os animais se reproduziam aos milhares, os vegetais floriam em profusão e os homens eram felizes e nunca mais dali se foram. Misturaram... misturaram. Até que formou o clã. Beleza, força e coragem. Assim se fez o povo.
    Tudo é festa, colorido e som. Todos são músicos, artistas e poetas.
    Tem até quem diz que em minha cidade quando nasce um filho, joga-se na parede. Se pregar é músico ou poeta e se cair é músico, poeta e boêmio.
    As mulheres possuem uma beleza tão grande que chega a hipnotizar estranhos. Usam roupas coloridas, adornos pelo corpo e cabelos longos. Tranças longas, belas tiaras,
cordões de ouro, anéis e pulseiras, muitas delas feitas pessoalmente.
    Dançam como ninfas e cantam o som dos deuses.  Possuem um timbre de voz que faz as pedras se movimentarem e as águas do rio encrespar.
    De cabelos longos, lisos, anelados ou totalmente encarapinhados, são todas umas fadas. Dançam e cantam a luz da lua e enfeitiçam homens e deuses. São belas. Negras, brancas ou amareladas, todas se pintam para conquistar seus homens e estes ficam tão enfeitiçados que  por elas choram a vida toda.
    Tocam todos os instrumentos musicais, homens ou mulheres e saem pelas ruas a fazer serenatas ou cantatas, e ali compõem seus versos, suas músicas ao luar. Imitam o
cantar do rio, das cascatas e da mata que festeja os equinócios e solstícios num eterno se revestir de cores, cheiros e sabores. Cantam a cantiga dos pássaros, falam com os animais.
    Amam o violino, a flauta, a guitarra e o piano. A música faz parte da  arte e da vida.
    Os poetas abundam. Em toda casa se faz poesia e a poesia se faz em cada coração.           ]
    Os amores são quase eternos, e,  quando não são, ficam remorsos e empedernidos,  vão se transformando em música ou poesia. Assim é minha cidade, um pouco da ternura dos índios, muito da sabedoria dos ciganos e algo do sensualismo dos europeus.
     Um clã... Uma tribo... Uma cidade diferente das outras. Quer saber onde está? no meio do coração de quem a busca.
     Adoram as cores e fazem dos coloridos de suas saias longas e soltas o movimento de suas vidas. Geram seus filhos e amamentam como se fossem beija-flores, usando apenas o mel de seus próprios corpos e a doçura de suas próprias almas. Numa miscigenação profunda e profícua fizeram uma etnia.
     Acreditam em fadas e duendes, fazem feitiços, simpatias e  benzimentos. Curam com as plantas, com a água e com o espírito. Acreditam em tudo e em nada, mas para não se fazerem diferentes, acreditam.
     Amam os cavalos como um símbolo. São fiéis aos dias do ano como a cada passo do vento e por isso compõem poemas. Somos todos, ali ou longe de lá, filhos do vento.

Sobre a autora: Ridamar Batista é escritora,  presidente da Academia de Letras do Brasil, Seccional Anápolis, GO – ALBA e delegada-adjunta da Federação Brasileira dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes.


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